quinta-feira, 29 de abril de 2021

Adeus (à) Vida I


 

No dia em que me acordares
E os olhos eu não abrir,
Por favor, não chores,
Assim já deixei de sentir...

O ar passa livre por mim,
Sem obrigação de entrar
E de assim ter um fim:
Fazer-me a dor perdurar...

O sangue pára por fim,
De desenfreado correr,
O frio apodera-se de mim
Não há forma mais perfeita de morrer...

O corpo frio enrijece
Com o passar das horas,
E já nada m' entristece.


Cat.
2020.12.03

Avó


 

Há dias que não se esquecem.
Não importa o ano, muitas vezes as datas, com o tempo, se esvanecem.
Mas hoje, um dia 3 de Dezembro, há uns anos, marcou-me e jamais o esquecerei.
Lembro-me dos seus olhos azuis, diferentes dos meus e dos da minha mãe. É verdade que as cataratas, mais para o fim, não ajudavam a definir o azul, mas lembro de serem cor do céu em dia de Verão. Imensos e intensos.
Recordo o seu humor, numa malandrice escondida de quem já não tem pudor.
E o seu riso! Como era contagiante e sempre presente, mesmo quando a tosse teimava em levar a melhor.
Um dia pediu para passarmos a levar camisolas, que com a idade eram mais aconchegantes...
E recordo ainda mais as suas mãos, os dedos recolhidos, tolhidos pelas artroses de quem nunca teve tempo para as tratar.
Imagino a dor... Não só a de não se poder mexer um elemento básico do corpo, como a dor e frustração de não conseguir apertar um botão de uma blusa.
Mas o sorriso nunca a abandonou. E a gulodice. "Bolachas, mas só dois ou três pacotes que as irmãs malvadas roubam tudo. Eu sei quando vão comer-me as bolachas." E logo de seguida uma inconfidência sobre a incontinência de uma delas e a gargalhada como quem diz: cá se fazem, cá se pagam!
Nunca fomos íntimas. A relação degradada entre mãe e filha não mo permitiram. Mas havia um amor, um carinho inerente a quem é sangue do mesmo sangue, para quem se olha e vê parte de si. E eu era a "sua netinha". Aquela a quem deu 100 contos para o vestido de noiva. Sou um desastre: nunca casei... Acho que nunca se importou com tal.
Hoje faz anos que recebi a notícia da sua partida. E recordo os seus curtos cabelos quase todos brancos e a alegria que sempre tinha no rosto mesmo que não fosse o que o sentisse no seu coração.
Como é vívida a imagem do seu sorriso na minha memória!
Sim, há dias que nos marcam. Pela tristeza e pela alegria das recordações...


Cat.
2020.12.03

quarta-feira, 28 de abril de 2021

Decadência


 

Há chuva lá fora. Cai num compasso incerto como que adivinhando os meus pensamentos.
Os dias têm corrido quase sempre iguais, num confinamento que não sendo obrigatório, não te dá vontade de sair. Ou de ter para onde ir.
O que me vale são os pensamentos.
Não. Mentira.
Não valem de nada.
Ando oca. Vazia. Sem conteúdo.
Não vejo.
Não sinto.
Não me incomoda.
Não me alegra.
Não nada.
Indiferente.
Um mero andar por andar. Dentro destas quatro paredes.
As conversas acabam por me cansar e deixo de as ouvir e, da minha boca, saiem apenas os habituais ruídos de conforto.
Cansaço? Não.
Desespero? Não.
Tristeza? Não.
Mas minto, agora que penso melhor nos meus dias.
Eu sinto. Há momentos em que sinto.
Sinto um Amor enorme por tudo que é simples: no sol, na chuva, na erva, no rir de uma criança na rua, nas pessoas, na forma como o Mundo é perfeito. Ou poderia ser, se todos amássemos assim: incondicional. Sem julgar. Sem condenar. Se fossemos empáticos.
Sim, eu penso.
No resto do tempo parece que não pertenço aqui e que há uma névoa ao meu redor que me impede de sentir mais do que Amor. Como se fosse preferível não sentir, não ver, não pensar excepto se for esse Amor.
Como que só me permitisse ver o que realmente importa, o que realmente é importante para o meu crescimento como pessoa.
O resto, o resto é uma nuvem que tudo tapa e me impede de ver, sentir ou pensar...
Talvez seja isto o início da (minha) decadência como ser humano...


Cat.
2020.11.25

Pés sem chão


 

Pés sem chão, flutuo pelos dias,
Sem tempo, sem noção.
São apenas horas que passam,
Entre o dia e a noite,
A luz e a escuridão.
Tal como o meu pensar,
Agora livre e feliz,
Ora triste, sem rumo e em vão.
Tempos estranhos estes
Em que os dias de Outono parecem de Verão.
E nós fechados, num cerco,
Que nos impede de viver plenamente,
De poder abraçar, beijar e dar a mão.
A vida está diferente.
As pessoas estão diferentes.
Tudo está em transformação.
Apesar de tudo, da (aparente) dormência,
Que nos tolda a visão,
Há a esperança,
Há a certeza na mudança,
De crenças,
De pensares,
De formas de olhar o outro e o Mundo.
Pés sem chão, flutuando acima do material,
Dando importância ao moral,
Ao olhar o outro como igual,
A sonhar com um Mundo
Perfeito, onde todos temos
Um papel principal...
Vejo tudo a desmoronar,
Vejo cada vez menos empatia,
Cada vez mais os egos e o egoísmo
A ganhar caminho.
E no entanto, cá dentro,
No meu ínfimo imo,
Há (quase) uma certeza
Que o futuro será
Belo e lindo.
Pés sem chão, flutuando,
A (querer) acreditar
Na última utopia...


Cat.